INSANIDADES*
Os acontecimentos pareciam obscuros na mente daquela jovem, que sempre se mostrou tão sensata e equilibrada. Tudo aconteceu tão rápida e inesperadamente. Ela não conseguia entender direito o que acontecera. Naquela manhã quando acordou, ainda meio zonza, ouviu uma mistura de vozes vindas da sala de estar e, pela fresta da porta, viu uma multidão que se comprimia ao redor de um caixão. Dentro dele estava seu marido. Só então percebera que estava toda amarrada em sua própria cama. Começou a gritar tal qual uma louca; gritou, gritou, que seu parentes tiveram de interná-la em um nosocômio da cidade mais próxima.
Ninguém conseguia entender o que acontecera. Afinal aquele casal, juntos há um ano e meio, demonstrava viver feliz. Ele, um jovem de 25 anos, estatura mediana, branco, olhos claros, foi sempre amável e atencioso com a esposa. Ela, com 23 anos, estatura também mediana, morena, cabelos ondulados, parecia ser o protótipo da esposa apaixonada. Eram beijos a todo instante, mãos dadas pelo caminho, o que provocava, muitas vezes, olhares de admiração dos que os conheciam.
No nosocômio ela conheceu um lado da vida que até então só ouvira falar. Foram dias negros. Não conseguia dormir, pois, sempre que o fazia, várias cenas tenebrosas passavam por sua mente e, aos gri-tos, despertava. Poucas eram as pessoas que tinham coragem de visitá-la, e, quando isto acontecia, ficavam horrorizadas diante do estado que, a cada dia, parecia piorar.
Depois de algumas noites em claro, os médicos decidiram dopá-la. Se por um lado fê-la ter momentos de calmaria; por outro, fazia seus movimentos ficarem lerdos e lhe darem a aparência de quem realmente perdera o juízo.
Passados três meses do acontecido, Antônia, esse o nome da esposa agora semilouca, continuava sem entender o ocorrido.
Uma tarde recebeu uma visita inesperada e assustadora. Era o homem que perturbava as poucas noites de sono de Antônia. Quando o viu, logo vieram a sua mente as lembranças daquela noite trágica.
— Oi, Antônia! Lembra de mim? — disse Santana.
— Tirem esse homem daqui, tirem esse homem daqui — gritou ela, ao perceber a aproximação daquela figura atormentadora. Tudo em vão, pois Santana apresentara-se como o novo psiquiatra contratado pelo hospital.
— Eu disse a você que não suportaria vê-la feliz ao lado daquele plaiboyzinho metido a besta. — Você não devia ter-me trocado por ele, Antônia. Eu não merecia isso. Por que você fez isso. Por quê?
Antônia parece ter voltado à lucidez e começa a lembrar do tempo em que namorara Santana. Este sempre mostrou-se um homem possessivo e violento. O amor que Antônia sentia por ele foi-se transformando aos poucos em verdadeiro pavor. Queria a todo custo deixá-lo, mas sempre recuava ante as ameaças dele, que dizia: —Não adianta pensar em me deixar, pois se isso acontecer eu te mato.
Após anos de pressão junto de Santana, Antônia conheceu Cândido, um homem amável, cavalheiro. Foi paixão à primeira vista. Começaram a encontrar-se às escondidas.
— Não podemos continuar a nos ver somente quando você consegue livrar-se de Santana — disse Cândido. — Calma, Cândido, você não sabe o que ele é capaz de fazer se descobre o nosso relacionamento.
Logo o que ela mais temia aconteceu. Tiveram que fugir e na nova cidade casaram-se. Santana, porém, prometeu-lhes que não os dei-xaria viverem o "felizes para sempre".
Santana jurou não sossegar enquanto não descobrisse o paradeiro dos fugitivos. Todas as manhãs saía à procura de um sinal, o menor que fosse, indicando onde os acharia.
Foi assim que, ao encontrar a casa onde Antônia e Cândido moravam, Santana começou a arquitetar seu plano. Durante vários dias observou todos os passos do casal: hora que costumavam dormir, quais os horários de saída e entrada, nada poderia escapar-lhe.
Na noite fatídica, deixou o casal dormir e com a chave da casa que havia copiado conseguiu entrar no quarto. Colocou uma mistura no chá que costumeiramente Antônia tomava às madrugadas e, com uma facada certeira, atingiu o coração de Cândido, que morreu instantaneamente. Em seu plano estava ainda a idéia de fazer tudo parecer que Antônia tinha sido a autora da facada fatal. E assim o fez.
Antônia voltou ao seu estado de loucura e, num gesto súbito, investiu contra Santana com uma tesoura esquecida no seu quarto por um dos enfermeiros. Santana não teve tempo para reagir; só sentiu a dor no peito e o sangue jorrar sobre as mãos. Aos poucos foi dobrando-se até cair ao chão, já cadáver.
Ninguém tinha mais dúvidas. Antônia de fato enlouquecera e fizera mais uma vítima.
* COSTA, LAIRSON. INSANIDADES. Belém: L & A Editora, 2002.
MEUS CONTOS
LOUCO AMOR*
Era a primeira vez que deparava com aquele rosto, mas parecia conhecê-lo há muito tempo. Sua alma ficou perturbada e não conseguia pensar em outra coisa que não fosse aquela cena. Começou a dirigir, sem saber para onde ia. Só se deu conta quando foi parado por uma freada brusca. Havia avançado o sinal, e, por pouco, não colidiu com outro carro.
Continuou sua caminhada, mas não conseguia tirar da mente o rosto daquela bela mulher, de aproximadamente 27 anos, cabelos louros, de um aspecto encantadoramente macio. Seus olhos, porém, lhe pareciam muito, muito frios.
Ele acabara de chegar de viagem do Sul do Brasil, quando entrou naquele prédio para alugar um apartamento.
Só pôde ouvir o disparo da arma e um grito de dor. Nada mais. Foi tudo muito rápido. Aqueles minutos, todavia, pareciam-lhe uma eternidade.
Refeito do susto e dos pensamentos, resolveu parar e pensar no que deveria fazer. Não conhecia nada por ali. Mesmo assim conseguiu chegar a uma delegacia e contar o que presenciara.
A Polícia se deslocou para o local indicado por ele. Quando chegou ... nada! Nem sinal de tiros, mortes, nada mesmo. Logo pensaram tratar-se de uma brincadeira de mal gosto que algum vagabundo quis fazer.
Nova viagem para Belém. Desta vez não iria para aquele prédio, onde aqueles fatos terríveis aconteceram. Partiu à procura de um novo hotel.
Já instalado, ouviu um tiro e passadas rápidas aproximando-se de seu apartamento. Desta vez a mulher passara bem próximo dele e pôde ver, além de seu rosto, o corpo esbelto. A mulher lhe pareceu ainda mais peculiar. Da porta pôde ver o sangue escorrendo e o corpo de um homem caído ao chão. Desta vez não teve dúvidas, foi correndo dar o alarme à Recepção do hotel. – Seu Antônio, acabo de presenciar um assassinato no corredor.
O recepcionista foi então ver do que se tratava e ... nada de anormal foi observado.
Júlio foi para o apartamento. – Não posso estar ficando louco – pensou ele. Vi claramente aquela cena.
A partir daí estas cenas passaram a ser rotina na vida daquele jovem.
Em pouco tempo estava ele habitando um manicômio.
Um dia, num de seus ataques, conseguiu fugir. No hospital foi um “deus-nos-acuda”. Somente dias depois foi encontrado morto por atropelamento.
No sepultamento, o comentário era um só: Aquele rapaz havia escapado de ser morto por sua noiva, uma barba azul, e, a partir desse incidente, passou a ter visões de uma mulher que matava friamente suas vítimas.
* LAIRSON, COSTA. INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.
MISTÉRIOS DA SEXTA-FEIRA*
Eu, minhas irmãs, meus primos e toda a garotada da rua não víamos a hora de chegar a sexta-feira, pois era o dia em que, segundo a vizinhança, dona Docas varava a madrugada, voando de uma árvore a outra do Barrerão, terreno que ficava por trás de nossos quintais e que era o lugar onde toda a criançada gostava de jogar bola, tomar banho nas cacimbas, soltar pipas e também esconder-se para não apanhar dos pais.
Como éramos três famílias morando em três casas, uma ao lado da outra, nossa frente era uma das maiores da rua. Daí alguns vizinhos reunirem-se à noite em nosso terreno para ouvir as histórias de lobisomem, matintaperera e outros bichos que vovó nos contava, ou para brincar de esconde-esconde, ou ainda cair no poço, uma das preferidas, principalmente pelos rapazes e moças, tudo sob a luz de dois lampiões.
Seu João, marido de dona Docas, ainda segundo a vizinhança, quando entrava na mata só se ouvia o barulho de animais correndo, assustados pelo imenso porco que costumava aparecer às sextas-feiras.
O Sábado, coincidência ou não, era o dia em que dona Docas e seu João dormiam até mais tarde. Na rua, era um falatório só. – Vocês ouviram o assobio da Matintaperera, ontem? – dizia dona Coló aos filhos, tentando intimidá-los para que não fizessem traquinagens. – Eu vou entregar vocês pra Matintaperera, seus moleques! – As galinhas não pararam de cacarejar – dizia dona Rosa, uma das mais faladeiras. Cedo estava à porta de sua casa contando as últimas novidades da rua.
Dona Docas tinha o hábito de fumar cachimbo e seu João, imensos charutos feitos de palha de tauari. Passavam horas numa cadeira de balanço a soltar muitas baforadas.
Saíam muito pouco de casa e, quando o faziam, a garotada costumava apontá-los na rua. – Lá vem a Matintaperera, ou – Lá vem o Viraporco, ao que dona Docas e seu João resmungavam umas palavras inaudíveis.
A casa deles ficava em frente à nossa. Era um barracão imenso com um quintal não menos grande, todo cercado. Nele havia mangueiras, cupuaçuzeiros, goiabeiras e jambeiros. Porém, por incrível que pareça, a molecada resistia à tentação de “roubar-lhes” alguma fruta do quintal. O medo da Matintaperera e do Viraporco sobrepujava a vontade de saborear aqueles frutos apetitosos.
Certa vez desapareceu uma criança, o Artuzinho. Foi um “deus nos acuda”. Logo apareceram versões de que na noite anterior viram o menino entrar no mato e não mais aparecer. Era justamente uma sexta-feira. Culparam o Viraporco. – Foi ele com certeza – diziam uns. Não, foi a Matintaperera – diziam outros. Até os ciganos levaram a culpa pelo sumiço de Artuzinho. Esses tinham a fama de roubar crianças incautas. O certo é que o garoto nunca apareceu.
Dos vizinhos, somente nossos pais tinham acesso à casa de dona Docas e seu João. Por isso sempre íamos à casa deles. Em nossos terrenos também havia muitas frutas, mas, quando íamos a casa de D. Docas, esta fazia questão que provássemos das mangas, goiabas ou outra fruta da época.
Ficávamos nos perguntando: – Por que será que falam tanto de seu João e dona Docas. Eles são tão amáveis conosco.
Como dissemos, a casa era grande e percorríamos toda ela, brincando. Toda não. Lembro que havia um compartimento onde dona Docas não deixava ninguém se aproximar. A porta ficava sempre fechada. Sabia-se somente que nele havia um grande baú. Isso aguçava nossa curiosidade. – Que segredos guardavam naquele quarto? Naquele baú?
Até hoje não sabemos que segredos eram esses, mas ainda guardamos na memória aquelas esperas pelas sextas-feiras, quando tudo podia acontecer.
* COSTA, LAIRSON. INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.
O ASSALTO*
Era para ser apenas mais uma longa espera numa fila de Banco da cidade. Mas aquele dia foi diferente.
Percebi algo estranho desde minha chegada para fazer alguns pagamentos. Havia uma espécie de seleção à entrada, mas a justificativa de que a agência estava em obras, com pouco espaço para funcionamento, me pareceu convincente.
Depois de quinze minutos de minha entrada, aconteceu o que classifico como uma das piores experiências de minha vida.
Um grupo de cinco homens entra fortemente armado e rende primeiramente os seguranças do Banco; um deles corre em direção ao gerente e coloca-lhe uma arma na cabeça, enquanto outros dois se dirigem para nós: - Todos pro canto. Nada de gracinha ou se arrependerão amargamente!
Éramos umas 30 pessoas, entre homens e mulheres. Havia quatro senhoras que aparentavam mais de 60 anos. Duas delas não suportaram a forte emoção e desmaiaram; as outras duas não paravam de chorar e de tremer.
Sempre fui muito destemido, mas confesso que, ao ver toda aquela cena, meu coração só faltou sair pela boca. O pior era a pressão psicológica que faziam sobre nós.
- Vamo pro cofre do Banco pegar a grana - disse um dos bandidos ao gerente, apontando-lhe a arma.
Quando pensava que tudo se resolveria com a entrega do dinheiro aos assaltantes, nova surpresa. Uma voz ao alto-falante dizia: - O Banco está cercado, entreguem-se e nada de mal lhes acontecerá.
Os bandidos ficaram mais alvoroçados e disseram que deveriam afasta-se ou pessoas inocentes iriam pagar com a vida.
Todos ficaram mais nervosos ainda. Depois de alguns minutos de troca de ameaças, saltam do forro alguns policiais na direção exata onde estavam os bandidos. Estes são imobilizados.
Para nossa surpresa maior, minutos após esses acontecimentos, os próprios assaltantes e mais os funcionários e até as senhoras, antes desmaiadas e trêmulas, começaram a aplaudir como se nada houvesse acontecido, dizendo que a operação tinha sido um sucesso.
Após alguns esclarecimentos, tomei conhecimento de que somente eu e mais dois clientes não sabíamos de que tudo não passava de uma simulação.
*COSTA, LAIRSON. Constando Histórias. Belém: L & A Editora, 2006.
AMOR AO PRIMEIRO LATIDO*
Tatá era uma cadelinha muito mimada por sua dona, Lili. Era branquinha, branquinha, de pêlos bem fofinhos, mais parecia uma ovelhinha.
Todos os dias Tatá saía para passear na calçada da Praça Batista Campos.
Todos os cachorros da praça sonhavam namorá-la, pelo menos receberem um olhar de Tatá. Ela, porém, não dava “bola” para nenhum deles. Só queria saber de desfilar, a cada dia, um novo modelito, preparado com muito carinho por Lili. Pensava: - Hoje vou com meu chapéu de palha e a coleira branca para combinar com meu vestido de bolinhas pretas; amanhã usarei aquele lacinho azul com o vestido de rendas ...
E lá ia para mais um passeio vespertino, esbanjando charme e sempre chamando a atenção dos cães ali presentes. As outras cadelinhas sentiam inveja de Tatá, pois quando passava os cães só tinham olhos para ela. Tatá nem ligava para os comentários das cadelinhas. Passava sempre faceira ao lado de sua dona.
Certa vez, em mais um dia que parecia normal para ela, aconteceu o inesperado. Tatá viu um cãozinho que nunca percebera antes. O coração da cadelinha acelerou de repente; ela parou por um instante e começou a contemplar aquele novo cachorrinho na praça. Lili, porém, começou a puxá-la e ela teve que seguir adiante.
Naquela noite Tatá não conseguiu dormir direito; só pensava no cãozinho que avistara pela tarde. Nunca esperara com tanta ansiedade pela hora do passeio. Desta vez capricharia ainda mais no visual.
Naquele dia, no entanto, o cãozinho não apareceu. Tatá ficara desolada. À hora do jantar, Lili estranhou o fato de Tatá nem tocar na comida.
Pela manhã, logo cedo, foi levada a uma clínica veterinária. Nada de anormal foi detectado. O mal de Tatá era no coração.
À tarde latia insistentemente, mostrando a Lili a porta da rua, demonstrando-lhe que já deveriam sair para o passeio.
Mais uma vez voltava decepcionada. O cãozinho não aparecera novamente.
Tatá não conseguia mais se conter de tanta tristeza. Agora, além de não querer comer, também se punha a ganir, como se estivesse chorando. Lili não sabia mais o que fazer.
Tatá só conseguia se espertar na hora do passeio. O cãozinho durante cinco dias não deu as caras.
Tatá era já a personificação da tristeza. Aquele sábado, contudo, seria o seu grande dia. Logo que chegou à praça, avistou, de longe, o cãozinho vira-latas. Seus olhos brilhavam de felicidade. Puxou Lili em direção ao cãozinho. Lili entendera tudo. Embora não ficasse muito satisfeita em saber que Tatá se apaixonara por um vira-latas, não fez objeção.
O cãozinho correspondeu aos sentimentos de Tatá e começaram um lindo namoro.
* COSTA, LAIRSON. INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.
LOUCA PAIXÃO*
Do lindo rosto de Sofia, deslizam lágrimas pelo pai, encontrado morto pelo avô na festa de seus treze anos.
O cortejo seguindo o féretro de Marcos prosseguia lentamente em direção ao mausoléu da família Medeiros, uma das mais tradicionais de Belém, no cemitério de Santa Izabel. Embora o sol brilhasse naquela manhã, ainda se sentia o cheiro de terra molhada, devido à chuva que caíra durante a madrugada.
Muitas pessoas foram dar o último adeus ao jornalista que fizera, devido às matérias que publicava, muitos amigos e inimigos. Nas mentes dos presentes, uma pergunta estava sem resposta: por que Marcos cometera suicídio?
Sofia, Laura e Maria estavam inconsoláveis, pois eram apegadas demais ao pai. Marcela sabia que todos esperavam que também ela, sendo a esposa enlutada, se derramasse em prantos. Ela parecia pálida, e, se possuía alguma lágrima dentro dela, provavelmente estava congelada.
Finalmente o cortejo parou sob a sombra de uma frondosa mangueira junto ao mausoléu.
A cerimônia fúnebre foi rápida. Todos se afastaram, menos Marcela, que aproveitou para deixar uma rosa vermelha sobre o túmulo, onde foi colocada a epígrafe:
– Adeus, meu grande amor! Até um dia.
Já estava de partida quando sentiu a mão de uma mulher sobre seu ombro.
– Sinto muito só ter podido chegar agora. Soube da notícia hoje de madrugada quando cheguei de uma rápida viagem ao Rio. Tão logo pude, vim para cá.
– Você sabe, Marcela, o quanto Marcos foi importante para minha carreira. E como éramos amigos. Achei estranho ter se suicidado. Em seus últimos e-mails parecia tão entusiasmado com o sucesso de seu mais novo projeto. Era um excelente jornalista, apaixonado por tudo o que fazia. Detalhista, buscava sempre a perfeição. Nesse momento, Sofia aproxima-se das duas e observa, calada, o diálogo.
– Mas afinal de contas o que levaria um homem como Marcos a cometer o suicídio? – perguntou Cláudia. Respeito a sua dor, mas custa-me entender o que Marcos fez a si mesmo. É muito estranha essa atitude dele, não acha? – completou Cláudia, olhando fixamente para Marcela.
– O Marcos se foi, isto é um fato, as circunstâncias em que isso aconteceu não é importante para mim. Gostaria que realmente respeitasse a minha dor e não tocasse mais neste assunto.
Essas palavras finais Marcela as deu de maneira ríspida.
– Agora me dê licença que eu já fiz o que tinha de ser feito: enterrar o meu grande amor!
Sofia, percebendo o mal-estar entre as duas, tentou amenizar agradecendo a Cláudia pela presença e desejando-lhe um bom-dia.
Cláudia ficou pensando no que poderia levar um homem como Marcos a cometer suicídio. Ela o conhecia muito bem; era uma espécie de amiga-confidente. Sabia que ele tinha verdadeira paixão pelo jornalismo, pelas filhas e pela esposa.
Cláudia também era jornalista e trabalhava com Marcos. Foi para São Paulo fazer o mestrado e emendou logo o doutorado. Estavam constantemente se falando, seja por e-mail seja por telefone. Marcos a deixava informada dos principais acontecimentos da terrinha enquanto Cláudia mandava-lhe as últimas novidades do Sudeste do país. Como já defendera sua tese, estava decidida a voltar para Belém, a morte de Marcos só a fez acelerar o retorno.
A primeira semana foi de readaptação e de arrumar a mudança. Foram mais de cinco anos fora de Belém. Depois precisava retornar às atividades de jornalista. Porém uma atividade em especial lhe despertava maior atenção: descobrir o que se passou naquele dia 7 de abril. Para isso precisava freqüentar a casa de Marcela.
Só não conseguia entender o ciúme doentio de Marcela, já que o marido só tinha olhos para ela.
Prometeu a si mesma que não sossegaria enquanto não tivesse uma resposta convincente para o que vira sair nas principais manchetes dos jornais do Estado.
Cláudia seguiu para sua casa, na Av. Almirante Barroso, onde seus familiares a esperavam para que recomeçasse sua vida. Retomaria o trabalho na semana seguinte, pois ainda precisava resolver algumas pendências.
Já em casa, deitada confortavelmente em sua cama, começou a pensar em algumas estratégias para ficar sabendo melhor o que acontecera antes de Marcos ser encontrado morto.
– Preciso me aproximar mais de Marcela e de seus familiares – pensou ela.
Havia se passado um mês, Marcela viajou com as filhas para o Rio de Janeiro, buscando isolar-se um pouco de toda aquela situação. Hospedou-se na casa de uma amiga. As filhas encontravam-se em férias escolares.
Marcela não trabalhava nem tinha necessidade de fazê-lo, pois, sendo filha única de rico madeireiro do Estado e viúva de um dos melhores jornalistas da região, sua situação financeira era bastante confortável.
Ainda no Rio de Janeiro, as quatro combinaram não retornar para o belo apartamento em que moravam, iriam passar uns tempos na casa de seu Olavo e dona Odete, pais de Marcela. Não se achavam preparadas para voltar ao lugar do fatídico acontecimento.
Olavo e Odete tinham de 55 anos de idade e moravam numa espaçosa casa na Avenida Braz de Aguiar. A atividade empresarial de Olavo o obrigava a fazer constantes viagens, principalmente pelo sul do Pará, o que causava certo incômodo à dona Odete. Apesar de exercer uma atividade permeada por irregularidades, seu Olavo era um dos que trabalhava ao lado da legalidade, respeitando todos os limites e restrições do IBAMA. Era um homem correto, conservador, amável com a esposa, com Marcela e principalmente com as três netas. Odete sempre foi muito apaixonada pelo esposo e pela família. Passava boa parte do tempo fazendo trabalhos manuais, que doava para obras assistenciais.
Marcela, Sofia, Laura e Maria passaram 30 dias no Rio de Janeiro. Chegaram visivelmente revigoradas.
Nossa! Estava mesmo precisando viajar, conhecer outros lugares, outras pessoas – exclamou Marcela, respirando fundo e sentando-se na poltrona.
Depois de algum tempo, dona Odete, percebendo certa tristeza em Marcela, pergunta se há algo errado.
– Não, mamãe, estava apenas pensando em Marcos, que sempre sentia medo de andar de avião. Depois disso, levantou-se e foi tomar um drinque.
Toca o telefone e Sofia corre para atendê-lo.
– Eu vou me deitar um...
– Mamãe, é a Cláudia, aquela amiga do papai – disse Sofia, tapando o fone com as mãos.
– Diga-lhe que estou deitada e pedi para não ser incomodada.
– Mas eu já disse que a senhora...
– Repita o que lhe disse.
Sofia desculpou-se e despachou Cláudia.
– Quem é Cláudia? – perguntou dona Odete a Marcela.
– É a colega de trabalho de Marcos que estava fazendo doutorado em São Paulo – respondeu Marcela.
– E por que você não atendeu à ligação?
– Por que não estou disposta a remexer em assuntos que me doem.
– Entendo, filha, claro que entendo.
Sofia pensou em contar à avó a conversa que as duas tiveram no cemitério, mas preferiu calar-se.
Passados alguns dias, Cláudia continua insistindo em falar com Marcela.
– Filha, tenho observado que você tem evitado falar com Cláudia, você sempre gostou de atender a todos os telefonemas. Essa moça já ligou, só hoje, umas cinco vezes.
– E a senhora atendeu alguma vez?
– Não. Mas o que tanto ela quer com você?
– Apenas conversar sobre o Marcos – respondeu Marcela, tentando convencer a mãe.
Aliás, já é hora de conhecermos melhor Marcela e Marcos. Ela nasceu em Belém do Pará e estudou nos melhores colégios da cidade. Sempre teve tudo do melhor. Conheceu Marcos quando se preparava para prestar o vestibular. Tão logo viu aquele jovem determinado e muito bonito, apaixonou-se perdidamente, a recíproca foi verdadeira.
Os dois prestaram vestibular. Ela, para Arquitetura; ele, para Comunicação Social. Ambos se formaram, ela, porém, não seguiu a profissão.
Aos 20 anos veio a primeira filha, Sofia. Esta puxara ao pai. Meiga, educada, sempre muito determinada em conseguir seus objetivos. Pela manhã, fazia o antigo colegial; à tarde, piano, mas o que mais gostava de fazer era escrever fatos que retratassem o cotidiano.
Quando Sofia completou dois anos, Marcela deu à luz Laura, a mais parecida fisicamente com ela.
Marcos desejava que a esposa lhe desse um filho que tivesse o seu nome. Mas veio-lhe a terceira filha, que, por insistência de dona Odete, recebeu o nome Maria.
Marcos adorava as três filhas. Quando não estava no jornal trabalhando, tinha imenso prazer de estar com elas e com a esposa.
Depois do nascimento de Maria, Marcela resolveu não ter mais filhos. Queria preservar a silhueta. Marcela era uma mulher muito ciumenta, o que deixava Marcos envaidecido, mas às vezes assustado pelas reações possessivas da esposa. Marcela temia que ele procurasse realizar seu sonho de ter um filho com outra mulher.
Ao retornar para seu ateliê e reiniciar seus trabalhos, Odete encontrou Olavo tomando seu açaí gelado com farinha de tapioca.
– Eu estava a sua procura, Odete. Onde você se meteu?
– No quarto de Marcela – respondeu dona Odete.
– Ela está com algum problema?
– Não. Fui ver a roupa nova que ela comprou no Rio.
Passaram para a sala de estar. Enquanto conversavam, Marcela surge e anuncia que sairá e demorará a voltar. Ela estava vestida com um tubinho1 vermelho e com uma maquilagem que lhe ressaltava os olhos verdes e os lábios carnudos.
– Marcela, aonde você vai desse jeito e com toda essa chuva?
Marcela não deu ouvidos ao pai, saiu sorrindo.
Nesse momento, Sofia desce e escuta os comentários do avô em relação a sua mãe.
– Odete, você não acha que nossa filha superou rapidamente a morte do marido? Ela não procura saber o porquê do suicídio dele. Conformou-se com o laudo óbvio do IML.
– O que você quer dizer com isso, Olavo?
– Desde que Marcos morreu, tenho observado o comportamento estranho de nossa filha, mas talvez seja por conta do choque da perda – disse, tentando dissipar da cabeça maus pensamentos.
Na noite seguinte, toca o telefone na casa dos Medeiros. Era Cláudia novamente querendo falar com Marcela. Desta vez ela atende ao telefone.
– Nossa! Como é difícil falar com você – Cláudia fala em tom irônico.
– É que andei bastante ocupada ultimamente. Mas, do que se trata?
– É um assunto muito importante para mim e para você, mas não gostaria que fosse por telefone.
Marcela ficou intrigada, mas resolveu marcar o encontro para o dia seguinte. Assim que desligou o aparelho, um frio correu-lhe o corpo. Todos perceberam a sua mudança de humor. Ela tentou disfarçar dizendo que estava com dor de cabeça e iria deitar-se.
Cláudia começou a pensar no que faria para saber mais coisas sobre a vida de Marcos, sem parecer invasiva demais. Marcela já havia demonstrado que não iria expor sua vida, nem a do marido, até porque não havia uma relação íntima entre as duas, apesar de Cláudia e Marcos serem grandes amigos. De repente, uma idéia: conduzir a conversa com Marcela como se fosse uma entrevista visando a produzir um livro em homenagem ao eminente jornalista Marcos Paes.
O encontro aconteceu e o plano de Cláudia havia dado certo, o que facilitou o convívio desta na casa dos Medeiros. Foram alguns meses de idas e vindas, sem que nada que trouxesse alguma luz às desconfianças de Cláudia pudesse ser observado. Até que Marcela recebe uma ligação que a deixou bastante perturbada. Era de um homem chamado Duarte, que dizia precisar de mais dinheiro, pois o que recebera já havia acabado.
Marcela recebeu outras ligações desse mesmo homem e era notório o estado em que ficava após tais ligações.
Cláudia passa então a seguir Marcela. Numa das investidas, a viu encontrar-se com um homem alto, cabelos até os ombros e de chapéu. Era de fato Duarte. Percebeu quando este recebeu uma quantia em dinheiro. Não hesitou em registrar tudo com sua máquina fotográfica. Isto lhe seria muito útil. Sua suspeita estava confirmada. Aquele homem tinha alguma coisa a ver com a morte de Marcos. Cláudia, porém, agiu como se nada tivesse acontecido.
– Hoje iremos fazer uma visita importante – disse Olavo sentado em sua poltrona preferida tomando um gostoso suco de bacuri.
– Para quem, vovô? – perguntou Sofia, sentada, tomando também o delicioso suco, acompanhada de sua avó.
– Meu amigo francês, o arquiteto Pierre.
–Será que eu posso também participar desse jantar? – Perguntou Cláudia, surgindo na sala.
– Claro que pode, Cláudia – disse-lhe Olavo.
– Muito obrigada, Sr. Olavo.
– É só você esperar até às oito horas da noite – disse Sofia.
Na hora marcada, o motorista de Pierre veio apanhá-los.
Foram recebidos por uma governanta em impecável uniforme, que os conduziu até a sala principal da linda mansão.
Próximo à mesa do jantar aparecia um bufet apetitoso, uma mostra das cozinhas francesa e paraense.
– Meu Deus, D. Odete! Quanta fartura e quanto luxo – admirou-se Cláudia. – Quem é esse homem? Eu estou louca para conhecê-lo.
– É um homem maravilhoso, respondeu D. Odete.
Pierre os esperava na sala de estar. Era um homem de 1m85 de altura, atlético, loiro, de mais ou menos 45 anos. – Salve, amigo Olavo! Nossa, quanto tempo!
– Olá, amigo Pierre! – Por onde andava?
– Viajando para tentar amenizar um pouco a perda de minha esposa.
– Como vai, Sr. Pierre? Disse Sofia.
– Vou muito bem mademoiselle. Você está cada vez mais linda.
Pierre olhou para Cláudia admirado com aquela linda morena de cabelos longos cacheados.
– Nossa, como é bonita a sua amiga, Olavo!
– Eu me chamo Cláudia Almeida. Muito prazer.
– O prazer é todo meu, chéri – beijando-lhe a mão. E Marcela?
– Ela anda muito estranha estes últimos tempos. Mês passado, Marcos completou um ano de morto e parece que esta data serviu para deixá-la bastante perturbada.
Mas não falemos de coisas tristes disse seu Olavo, puxando um assunto que desencadeou uma conversa agradável entre eles, até que Pierre se levantou e se dirigiu para a sala de jantar, fazendo sinal para que todos o seguissem.
Durante o jantar os olhares entre Pierre e Cláudia deixavam evidente o interesse um pelo outro.
Pierre propôs um brinde:
– Ao nosso reencontro, Sr. Olavo, à sua família e a essa jovem encantadora que acabo de conhecer.
Desse dia em diante, Cláudia e Pierre passaram a encontrar-se freqüentemente. Passados três meses de namoro, resolveram ficar noivos.
Sofia, Laura e Maria, agora estudando à tarde, se preparam para voltar às aulas. Vestiram os uniforme e desceram para o almoço com a avó, já que seu Olavo estava para o sul do Pará e Marcela precisou viajar por uma semana, após misterioso telefonema.
Enquanto almoçavam, Cláudia surge na cozinha.
– Boa-tarde, dona Odete.
– Boa-tarde, Cláudia. Almoce conosco?
– Com todo o prazer – disse, sentando-se na cadeira ao lado de Sofia. – Tudo bem com você, Sofia?
– Estou bem obrigada.
– Eu não sabia que você ia recomeçar suas aulas hoje.
– Sofia conclui o colegial este ano – disse dona Odete.
– Vovó, eu preciso passar rapidamente em casa para pegar o material escolar.
– Ih! É mesmo. Eu vou mandar o motorista passar por lá antes de irem para a escola.
– Eu posso perfeitamente pegar para vocês, Sofia. Não vai custar nada.
– Você não sabe o favor que faz, senhorita Cláudia – disse dona Odete.
Cláudia pegou o material escolar de Sofia e aproveitou para levá-la à escola e seguiu novamente para a casa de Marcela.
Marcela volta antes do previsto e segue direto para sua casa.
Ao chegar lá, estranhou o fato de o carro de Cláudia estar estacionado em frente de sua casa. Assim que atravessou a sala de estar, estranhou não encontrá-la ali. A passos lentos, encaminhou-se para o seu quarto, mas ela não estava ali também. Aproveitou e pegou um revólver que estava na gaveta de sua cômoda e saiu na direção da cozinha.
Cláudia estava tão entretida lendo o diário de Marcela, que não percebeu a aproximação desta.
Assustou-se ao vê-la apontando uma arma para ela. Tentou dar um passo à frente, mas Marcela lhe falou:
– Não tente se fazer de engraçadinha, pois não exitarei em estourar os seus miolos.
– Assim como você acabou com a vida de seu marido?
– Ele me obrigou a fazer isso – disse Marcela, visivelmente atordoada com as palavras de Cláudia.
Mas o que pode ele ter-lhe feito, se a amava tanto?
Naquele momento Marcela começou a expor o motivo que a levou a matar o homem pelo qual era perdidamente apaixonada, mas que ela achava não ser amada com a mesma intensidade. Isso somado ao fato de não terem conseguido ter um menino, um dos sonhos de Marcos, a atormentava, fazendo com que seu ciúme aos poucos se tornasse uma obsessão.
Marcela tinha uma empregada jovem e bonita de nome Amanda, que de repente apareceu grávida. Ela, sem nenhum motivo aparente, colocou na cabeça que aquele filho poderia ser de seu marido. Daí insistiu para que Amanda abortasse a criança. Inexperiente, a moça foi levada a uma dessas clínicas clandestinas, onde foi feito o serviço. Dias depois, veio a falecer.
Quando Marcos soube do envolvimento de Marcela nesse episódio, teve séria discussão com ela e disse-lhe que, tão logo passasse o aniversário de Sofia, a entregaria à Polícia para que pagasse pelo que fez.
Daí Marcela ter tido a idéia de contratar Duarte para matá-lo no dia do aniversário da filha, por ser mais fácil o acesso de pessoas sem levantar suspeitas. Tudo deveria acontecer de tal maneira que parecesse um suicídio. Para isso, Duarte arrumou um comparsa. A idéia era que Marcos visse o comparsa com uma de suas filhas na mira de um revólver e que ele cometesse suicídio, caso contrário uma de suas filhas seria sacrificada, sendo que, nesse caso, ele também morreria. Não tendo alternativa, Marcos optou pela primeira idéia.
– Bem que você merece acabar como ele, Cláudia, por intrometer-se na vida alheia. É uma pena que você não vai cumprir a sua promessa a Marcos. Você vai acabar como ele: no inferno.
Marcela atira na direção de Cláudia, que se joga ao chão, tentando proteger-se do disparo, mas é atingida no ombro direito.
Pierre, que já sabia das suspeitas de Cláudia com relação a Marcela e avisado por aquela de que iria tentar mais alguma prova na casa dela, enquanto estivesse viajando, foi procurá-la com receio de que algo lhe acontecesse. Ao chegar a casa de Marcela, escutou o tiro de revólver e correu para cozinha, de onde proveio o barulho.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou Pierre. – Ela está querendo acabar comigo – disse-lhe Marcela.
– Meu Deus, você acertou Cláudia – exclamou, dobrando-se ao chão para socorrê-la, quando ouviu Marcela dizer-lhe:
– Você não vai levá-la a lugar nenhum.
Pierre levantou-se na direção de Marcela, que lhe falou: – Eu tenho uma arma apontada para você. Fique quieto. Não se aproxime a não ser que queira que eu atire também em você.
– O que significa isto, Marcela? Não espera que eu fique aqui parado, enquanto Cláudia está morrendo.
– Que morra!
Pierre manteve-se calmo, pensando numa maneira de tirar a arma das mãos de Marcela.
– Eu não vou fazer nada para prejudicar você, apenas deixe-me socorrer Cláudia e esquecemos o que aconteceu aqui. Está bem?
– Ela não pode sobreviver, ela tem de morrer.
Cláudia, com muito esforço, diz a Pierre que foi Marcela quem mandou matar o marido.
Nesse exato momento, Sofia entra na cozinha e escuta a revelação de Marcela e diz com os olhos cheios d’água.
– Eu já sabia que tinha sido a senhora quem mandou matar papai.
– Como sabia disso? – perguntou Marcela, espantada com a revelação da filha.
– Desde que Amanda começou a trabalhar para nós, vi com bastante freqüência o seu comportamento em relação a papai. A senhora tinha ciúmes dele com Amanda. Saiba que não havia nada entre eles. No dia de meus treze anos, percebi que havia algo errado com ele. Ele estava muito nervoso quando veio cantar os parabéns, sua expressão não demonstrava nenhuma alegria. Quando terminou, ele foi para o quarto e logo depois apareceu morto.
– E por que você não me entregou à polícia? – quis saber Marcela.
– Porque, apesar de tudo a senhora é minha mãe.
Walter se atirou contra Marcela, na tentativa de tirar-lhe a arma. Porém esta dispara um tiro e atinge-lhe o peito.
Pensando que Cláudia também havia morrido, Marcela prepara-se para fugir. Pega seu carro e sai em disparada rumo à BR-316.
Sofia liga para um hospital, solicitando uma ambulância. Em pouco tempo chega a polícia e uma ambulância.
– Felizmente a bala parece não ter atingido nenhum órgão vital dela. Precisará ir ao hospital para repor o sangue perdido, disse um dos médicos.
– Já o estado dele é bastante grave, vamos levá-lo para o CTI, concluiu o médico.
Marcela ouve pelo rádio de seu carro a notícia de que Cláudia e Pierre tinham sido baleados e que a polícia estava no encalço dela, já tinham a placa e a marca do carro. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Felizmente, para ela, já tinha ultrapassado a barreira de Santa Maria do Pará. Seria mais fácil prosseguir viagem. Uma chuva forte começa a cair, o que dificultava-lhe a visão.
Já eram dez horas. Sentindo-se exausta, os olhos azuis atentos na estrada, teve um sobressalto, ao perceber que cochilara ao volante. Diminuiu a velocidade para pensar se seguia ou se entregaria à polícia. Logo abandonou a segunda idéia. Não suportaria a vida numa prisão. Era demais sofisticada para isso. Decidiu seguir em frente, fosse qual fosse o seu destino.
Já próximo à entrada de Irituia, Marcela avistou uma blitz. Estava sem saída, a qualquer momento, pensou ela, poderia ser presa.
Não pensou duas vezes. Deu marcha à ré e voltou em disparada.
Os policiais começaram então a persegui-la. Olhou pelo retrovisor e observou que um carro e uma moto da polícia vinham em seu encalço. Aumentou a velocidade.
À altura da ponte de São Miguel do Guamá um disparo furou um dos pneus do carro de Marcela, fazendo com que este ficasse descontrolado e se precipitasse no Rio Guamá.
Os policiais desceram de seus veículos para verificarem o que havia acontecido.
Como era noite e a chuva ainda estava forte, só puderam ver o carro sendo engolido pela água do rio.
Dois policiais jogaram-se ao rio para tentar salvar Marcela, mas observaram que, como a batida na ponte fora muito forte, o vidro e parte da frente do carro haviam ficado bastante danificados, e que não havia nenhuma pessoa no carro. Como a correnteza estava forte devido à chuva, supuseram que Marcela havia sido jogada para fora do carro e levada pela força da água.
O corpo de Marcela não foi encontrado, embora um grupamento do corpo de bombeiros passasse três dias nessa tentativa.
Passados alguns dias desses acontecimentos, Cláudia, agora casada com Pierre, resolveu ir até o cemitério de Santa Izabel, para levar flores ao túmulo de Marcos.
Cláudia deu os primeiros passos a caminho do mausoléu. Pierre quis acompanhá-la. Ela disse-lhe que precisava ficar sozinha ali.
Cumpri o que prometi. Sua imagem de jornalista suicida não existe mais. Todos os jornais estamparam nas primeiras páginas que você foi, na verdade, assassinado a mando de Marcela.
Depositou as flores em seu túmulo e disse-lhe um carinhoso ADEUS.
Seguiu a passos lentos ao encontro de seu grande amor, com quem dias depois viajou para a França.
Sofia, Laura e Maria passaram a morar definitivamente com os avós. Olavo passou a ir com menos freqüência ao sul do Pará, para cuidar melhor das netas.
Sofia recebeu de Cláudia as anotações que fizera nas conversas com Marcela e escreveu um livro que se tornou um best seller: LOUCA PAIXÃO.
* COSTA, LAIRSON; FERNANDES, JOSIANE. In: CONTANDO HISTÓRIAS, Belém: L & A Editora, 2005.
A BOTA*
Mosqueiro estava em festa. Chegara a hora da decisão. Dois times apenas restaram dos mais de 30 inscritos para o torneio de voleibol promovido pela Associação de Jovens Esportistas de Mosqueiro. A disputa estava acirrada, ambos os times com o mesmo número de pontos ganhos, um com a melhor defesa do campeonato, o outro, com o melhor ataque.
A expectativa era muito grande. A arena estava montada na praia do Carananduba, uma das preferidas dos amantes do voleibol. A lua cooperava com uma iluminação natural generosa. Mais de 5000 torcedores acotovelavam-se nas arquibancadas montadas. O espetáculo estava marcado para as 20 horas.
O embate começara pontualmente. Os dois times entraram sob os aplausos e vaias das torcidas. A rivalidade era tanta que os organizadores decidiram contratar um juiz de fora do Estado.
Ambas as equipes pareciam nervosas. Os erros apareciam de ambos os lados. Ah! Já ia até me esquecendo de anunciar o nome dos finalistas. Estavam se enfrentando o Profilaxia e o Arrebol. O primeiro representando o Areão; o segundo, o Carananduba.
O Profilaxia venceu o primeiro e o terceiro sets; o Arrebol, o segundo e o quarto. Pausa para tibreak. Os jogadores foram para os respectivos vestiários.
Hora de reiniciar a partida. O alto-falante anuncia a entrada dos dois times. Novos aplausos e vaias se confundem. De repente, um silêncio se fez sentir no local. Faltava um dos jogadores do Profilaxia. O dirigente do time não entendia o que estava acontecendo. Logo o melhor jogador em quadra havia sumido. Foi um zunzunzum só. Logo começaram a surgir várias versões para o ocorrido. Uns diziam que Alex havia sido raptado pelo time adversário; outros: - Ele amarelou, isso sim... mas a que ficou na cabeça dos presentes foi o que relatou uma das torcedoras do Profilaxia.
- Antes do início do jogo, percebi a presença de uma figura que a princípio me pareceu estranha, mas logo depois a esqueci. Era uma linda morena toda vestida de branco, calça comprida e blusa de alças finas. Na cabeça portava um chepéu de palha. Era alta e de cabelos até a cintura. A vi sair da praia, mas como a roupa não parecia molhada, o fato me chamou a atenção. Durante a apresentação da dança, a moça se aproximou de Alex, falou-lhe algumas palavras ao ouvido, em seguida saíram em direção ao rio. Como estava interessada no grupo de dança, não mais os observei.
Depois desse relato, outro espectador comentou: - Lembro-me de ter escutado falar de vários outros aparecimentos de uma moça misteriosa que aparecia nos eventos à beira da praia e que outros rapazes que por ela se enamoraram também haviam desaparecido.
Verdade ou não, o fato é que nunca mais Alex apareceu.
Quanto ao jogo, com a ausência do Profilaxia, o Arrebol tornou-se campeão.
* Publicado no livro CONTANDO HISTÓRIAS. Belém: L & A Editora, 2005.
O HOMEM INVISÍVEL*
Ele sempre foi um jovem inconformado com as mazelas proporcionadas pela vida. Sempre manifestou suas opiniões contrárias aos males da sociedade, principalmente contra a violência que atinge as grandes cidades, mas não somente isso: sempre que podia procurava contribuir para amenizá-las, participando de projetos que tentavam mudar essa realidade, tirando jovens de situações de risco.
Aos vinte anos entrou para a universidade com o sonho de, por meio de seus conhecimentos, ajudar de forma mais efetiva a livrar sua cidade da violência.
Conseguiu se formar em Química, com desempenho elogiadíssimo, não só pelos professores, mas também pelos colegas.
Aconteceu de seu irmão, que trabalhava como fotógrafo de uma grande revista, ser assassinado a bala numa briga entre traficantes e a polícia. A partir daí teve uma idéia que não lhe saiu mais da cabeça: descobrir uma fórmula que o tornasse invisível e, com facilidade, tivesse acesso a diferentes lugares, possibilitando-lhe desfazer as quadrilhas que agiam em sua cidade.
Passou a ficar horam sem-fim trancado no laboratório improvisado no quintal de sua casa, sem que ninguém soubesse de sua verdadeira intenção.
Eram fórmulas e mais fórmulas que inventava no afã de tornar-se invisível. Certo dia, após mais de um ano de tentativas, descuidadamente deixou cair um pouco de produto em um gato que se aconchegava embaixo da mesa onde experimentava as tais fórmulas. Dentro de pouco tempo, parte do gato havia sumido, mas logo voltou à normalidade. - Heureca, disse ele. Encontrei a fórmula. Basta agora torná-la um pouco mais forte.
Passou então a experimentá-la em si próprio e percebeu que obteve êxito. Conseguia entrar nos mais diferentes locais sem ser notado. Só precisava tomar a precaução de observar as horas, pois a fórmula durava somente cerca de doze horas.
Partiu então para seu objetivo principal: infiltrar-se no meio das quadrilhas que levavam pânico a sua cidade.
Foi aos morros, aos subúrbios, às prisões. Nestas descobriu que "muita gente grande" pertencente à Polícia estava envolvida muitas vezes com o tráfico ou era conivente com ele.
Os marginais e até mesmo a Polícia ficavam confusos com algo muito estranho que vinha acontecendo nos últimos tempos: documentos comprometedores desapareciam misteriosamente e caíam nas mãos de quem tinha compromisso com o término das ações de pessoas inescrupulosas.
O homem invisível estava feliz. Conseguira colocar na cadeia os que brutalmente assassinaram não só seu irmão, mas também centenas de de pessoas inocentes, vítimas do tráfico e das gangues. Durante um bom tempo a paz passou a reinar naquela cidade.
Mas alguma coisa começou a incomodar o homem invisível. O efeito da fórmula passou a extrapolar as doze horas. Mais ainda: não precisava mais da fórmula para tornar-se invisível. Observou também que no início ficava invisível, mas conseguia sentir seu corpo, ao tatear-se, coisa que não mais conseguia fazê-lo.
Começou a entrar em desespero e procurava uma fórmula que o tirasse, agora, desse pesadelo e o trouxesse à vida normal. Não queria ficar invisível para sempre, só queria ser ele novamente. Dia após dia ficava trancafiado em seu laboratório. Tudo em vão. Sentia seu corpo fragilizado e como que a desintegrar-se.
Foi assim que um dia... desapareceu por completo. Desde então a rotina voltou a imperar naquela cidade.
* COSTA, LAIRSON. Contando Histórias. Belém: L & A Editora. 2005.
AMOR IMPOSSÍVEL*
Toda vez que ela o via, o coração disparava. Foi assim desde que fora a primeira vez à fazenda dos pais dela para negociar um bezerro nascido há pouco dias. Bastou um bom-dia do rapaz, sem nenhuma segunda intenção, para despertar nela uma sensação que lhe pareceu muito estranha, mas ao mesmo tempo muito boa. Acabara de conhecer o amor, e foi à primeira vista.
Ela se chamava Dorotéia. Tinha apenas 16 anos, recém-completados. Era uma mocinha encantadora, de pele bem branquinha e umas poucas sardas, que lhe davam certo charme.
Ele se chamava Orlando e aparentava ter uns vinte anos. Era moreno, alto, cabelos pretos lisos, músculos rígidos, com aparência de alguém acostumado ao trabalho pesado. Era peão da fazenda "Aurora", que ficava a alguns quilômetros da dela.
Orlando não percebeu nenhuma manifestação especial por parte da moça, mas os pais desta sim.
Ele veio outras vezes à fazenda dela e aí sim começou a notar os olhares e sorrisos que ela lhe dava e os cochichos com a irmã mais nova. Logo começou a interessar-se também por ela. Como era solteiro, achava que não havia mal nisso. Puro engano.
Os pais da moça, observando o comportamento da filha e do peão, decidiram proibir a vinda deste à fazenda. Para eles, sua filha deveria casar-se com o filho do compadre Eduardo Noronha, dono da próspera fazenda "Maringá", distante cerca de uma hora da sua. Dorotéia, porém, não tinha nenhuma atração por Armando Noronha. Aos olhos dela, o rapaz parecia feio, com uns óculos de lentes garrafais.
Como precaução, pediram ao fazendeiro vizinho que mandasse Orlando para o mais longe possível daquelas paragens. Dentro de pouco tempo, o rapaz recebe a notícia de que trabalharia em Goiás, onde ganharia o triplo do que recebia ali.
Tentou se comunicar com Dorotéia, mas não houve ocasião para isso. Partiu, mas com a convicção de que voltaria e, depois de se estabilizar, levaria sua amada.
Para Dorotéia, foi contada a história de que Orlando havia fugido com uma das moças da fazenda onde trabalhava, e que esta estava grávida do rapaz.
A moça não se conteve e chorou durante vários dias. Como Orlando pudera fazer aquilo com ela?
Ele ainda tentou corresponder-se com Dorotéia, mas as cartas não chegaram às suas mãos.
Os pais de Dorotéia tomaram conhecimento de que Orlando prometera voltar para buscá-la. Resolveram tomar uma atitude mais drástica.
Tempos depois, chega a notícia de que Orlando havia sido morto numa briga com um dos empregados da fazenda onde trabalhava. A versão era a de que um dos peões se engraçara da esposa deste e, para lavar a honra, Orlando foi tirar satisfações com o tal rapaz.
Dorotéia tinha assim a confirmação de que o namorado a havia abandonado por outra. Mas ainda assim chorou a morte do amado.
Diante desses fatos, ela, mesmo contra a vontade, aceitou casar com o filho do compadre Eduardo Noronha. Foram infelizes para sempre.
* COSTA, LAIRSON. Amor Impossível. In: Contando História. Belém: L & A Editora, 2006.
MATINTAPERERA*
Quem me contou esta história foi o finado compadre Rufino Guimarães, um homem de 70 anos que morava lá para as bandas da Baía do Sol, uma das mais belas praias de Mosqueiro-PA. Ele jurava que fora testemunha do que passo a narrar-lhes.
Perla era uma bela mulher, morena-clara, mãos e pés perfeitíssimos, os cabelos pretos longos; os dentes é que destoavam, parecendo amarelados. Tinha 23 anos e era órfã de mãe. Só possuía como parente o pai, seu Cardoso, que não mais casara.
Tinha um ar misterioso e seus pretentendes sabiam que ela às vezes os impressionava de modo estranho.
Os pedidos de namoro causavam-lhe revoltas; seu pai despedia os pretendentes pedindo-lhes desculpas pela forma como esses eram tratados por ela.
- Gosto de estar sozinha.
- Mas, filha, não acha que nenhum homem mereça seu amor?
- Eu já disse e torno a repetir, papai: Quero viver sozinha!
Perla foi se tornando uma pessoa amarga e até cruel: apedrejava os animais e não suportava mais a presença humana. Somente o pai procurava entendê-la, embora fosse constantemente rechaçado por ela. As pessoas estranharam a mudança de comportamento daquela mulher um dia gentil e de aparência tranqüila.
O pai passou a perceber a ausência da filha às madrugadas. Cedo, escuro ainda, levantava e saía; entrava na mata, sem que ninguém a visse; ali passava horas e horas.
Com a presença de Perla, a natureza parecia ser tomada de nova energia. A folhagem tremia agitada; ouviam-se assobios, uivos e bramidos.
Numa das madrugadas, o pai resolveu ficar acordado e segui-la. Pegou uma espingarda e partiu para o meio da mata. Como estava muito escuro, acabou perdendo-se.
Começou a cair uma chuva fina. De repente começou a ouvir uns assobios finos ao longe. Ficou com o corpo todo arrepiado, o coração começou a bater descompassadamente; percebeu que estava em perigo.
Espantou-se ao encontrar uma casa velha de madeira abandonada, de onde percebeu partirem os estranhos assobios. Parou um momento, sentiu medo e vontade de voltar, mas reuniu as últimas forças para prosseguir. Quando se aproximou, observou que havia vários buracos na parede da casa. Resolveu espiar por um deles. - O que ou quem habitava aquele lugar? - pensou ele. Nada pôde ver, estava muito escuro dentro. Mas pôde sentir o cheiro sufocante de tabaco e cachaça que exalava do ambiente.
Olhando mais atentamente, seu Cardoso viu uma rede atada e dentro dela um ser que não parecia humano; com movimentos vagarosos, tremendo muito, e com arma em punho, abriu a porta, que, por estar velha, fez barulho, fazendo com que aquele ser saísse voando em sua direção com uma mistura de grito e assobio. Assustado, ele dispara um tiro, acertando o peito daquele estranho ser que, mesmo ferido, consegue fugir.
Seu Cardoso, depois disto, retoma o longo caminho de volta. Ao se aproximar de sua casa, avista uma multidão. Corre para ver o que acontecera. Quando chega, encontra Perla morta, com um tiro no peito. O pai logo entendera o que havia acontecido.
COSTA, Lairson; Fernandes, Joseane. Contando Histórias. Belém: L & A Editora, 2004.
AMOR QUE NÃO DESISTE*
Renato estava pensando em tudo o que lhe acontecera nestes dois últimos meses. Como sua vida havia tomado um rumo totalmente inesperado.
Mas ele estava gostando dessa nova vida, da casa nova, melhor dizendo mansão, com piscina, quadra de esportes, um belo jardim e árvores, muitas árvores. Empregados para servi-lo a qualquer instante. Parecia um sonho, um conto de fadas. Só uma coisa o perturbava: Não queria separar-se de seus antigos pais.
Quem o visse agora, não o reconheceria. Roupa bem arrumada, cabelos impecavelmente penteados, nem parecia aquele Renato que só usava roupas novas quando das principais festividades. Ele era um dos muitos rapazes pobres de Belém. Fora adotado por uma família de poucos recursos quando tinha apenas sete anos. Antes, ficava perambulando pelas ruas da cidade até que, numa manhã, o casal Ronaldo e Clarice passou por uma dessas esquinas e o garoto lhes chamou a atenção. Percebia-se, apesar do estado em que se encontrava, que era um menino bonito, moreno, de olhos meio esverdeados.
Clarice logo se apaixonou pelo moleque. Sugeriu ao marido que o adotassem, já que não podiam ter filhos. Ele, mesmo sabendo que não dispunham de condições para dar tudo o que uma criança necessita, se animou com a idéia. Trabalharia mais ainda para que nada faltasse a Renato.
Restava saber se ele aceitaria a proposta do casal. Perguntaram-lhe onde ficava quando não estava na rua, ao que o garoto lhes respondeu que à noite costumava dormir num abrigo para menores. Ele também pareceu gostar da idéia e acabou aceitando o convite.
O garoto cresceu saudável. Fez o primário e o ginásio numa escola pública de Belém. Sempre foi um aluno aplicado, o que dava orgulho aos seus pais. Já ia ingressar no antigo segundo grau quando um fato novo aconteceu em sua vida.
Certa manhã de domingo, chega à casa de Ronaldo e Clarice um carro, de onde saiu um casal muito bem vestido e educado. Disseram querer falar com os donos da casa. Surpresos com aquela visita, pediram para o casal entrar, não sem antes pedirem que não reparassem, pois era casa de pobre.
Perguntados sobre o motivo da visita, Adriano e Simone contaram-lhe que há dezessete anos tiveram seu filho roubado da maternidade e, desde então, começaram a luta para encontrá-lo. Depois de muita procura, chegaram até ali.
Ronaldo e Clarice ficaram apavorados com a idéia de perder o seu único filho, mas depois, passado o susto, viram que poderia ser bom para o futuro de Renato se ele realmente fosse o filho daquela família, que possuía excelente condição financeira.
O rapaz não estava na hora da tal visita. Fora participar de um campeonato de bairro com os colegas. Era considerado um “craque da redonda”, por isso muito solicitado pelos times do bairro.
Ao chegar, soube da novidade. De início ficara assustado. Nunca pensara que ele, antes sem ninguém, agora tinha duas famílias.
Um encontro entre eles foi marcado na casa dos novos pais.
Ao ver o rapaz, Simone não teve dúvidas, era o seu filho roubado. Adriano, mais cauteloso, disse-lhe que precisavam fazer o exame de DNA, para terem certeza absoluta de que aquele era seu filho. Feito o exame, tudo foi confirmado.
Renato se refaz dos pensamentos e lembra que prometera a Ronaldo e Clarice que voltariam no dia seguinte para a casa deles. Pensou então que, embora gostando da nova vida, não queria viver longe dos pais adotivos.
Adriano e Simone se anteciparam e sugeriram a Clarice e Ronaldo que passassem a morar em uma bela casa ao lado da deles, para que Renato pudesse usufruir da companhia das duas famílias, o que foi aceito e todos conviveram harmonicamente.
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* COSTA, LAIRSON. Insanidades. Belém: L & A Editora, 2006.
RIO BELO*
Nunca esquecerei o dia quando, pela primeira vez, visitei aquela cidade. Tudo nela me parecia aconchegante. Os habitantes eram por
demais hospitaleiros.
Sentia-se ali um ar de felicidade. Os moradores pareciam querer-se muito bem. Nada tirava a tranqüilidade daquela pacata cidade conhecida como Rio Belo, graças ao majestoso rio que a atravessava.
Os namorados também eram entusiastas do rio. Todos os dias viam-se casais serem formados a partir de um encontro às margens do Rio Belo.
Logo cedo podia-se ouvir o cantar das lavadeiras lavando trouxas e trouxas de roupas; elas nem sentiam o tempo passar; parecia um
ritual, que todo dia devia ser realizado.
Já estava me acostumando àquela vida tranqüila, sem muitas novidades. Mas para que novidade? Aquela rotina me parecia maravilhosa. Estava ali há seis dias para gozar minhas merecidas férias.
Fui ao Rio Belo para mais um delicioso banho da tarde. Mas o lugar não me parecia como de costume. Podia-se ouvir de longe o burburinho das pessoas. Quando cheguei mais perto, pude ver o que realmente acontecera. O povo estava alarmado. Um grupo de pescadores saiu para pescar às proximidades da nascente do rio, à noite, e, pela manhã, foi encontrada a embarcação toda quebrada e pedaços de corpos estraçalhados, como que por uma criatura faminta.
Ninguém conseguia entender ao certo o que acontecera. Foram várias as especulações surgidas: chupa-chupa ... A polícia foi chamada para investigar o caso. Até eles ficaram abismados com o que presenciaram. Jamais tinham visto tamanho horror!
O sepultamento do que restou dos corpos foi providenciado e a população, em polvorosa, acompanhou os féretros até o pequeno cemitério. Não se falava noutra coisa por ali.
Os policiais iniciaram as investigações. Foram até o local onde deveria acontecer a pescaria, mas não conseguiram muita coisa.
Uma semana se passara desse acontecimento. Os moradores começavam a esquecer-se do fato quando, num sábado pela manhã, novo alvoroço à beira do Rio Belo. Mais um grupo de pescadores apareceu nas mesmas condições dos primeiros. Dessa vez a população entrou em pânico.
O prefeito solicitou a intervenção da Polícia Federal para o caso. Foram feitas diligências até o leito do rio, mas nada foi esclarecido.
Uma das moradoras, dona Clotilde, proprietária do único hotelzinho da
cidade, procurou a polícia para dar-lhe algumas informações:
— Há cerca de seis meses apareceu por aqui um senhor aparentando cinqüenta anos e de hábitos muito estranhos. Não fez amizade com ninguém da cidade. Todos os dias ele seguia para os lados do leito do rio, bem cedo, levando alguns peixes em um pequeno aquário, que dizia servirem de isca, e só voltava ao final da tarde, mas nunca trazia nada da pescaria. Tão logo ocorreu o primeiro acidente com os pescadores, esse homem saiu da cidade e não mais apareceu.
Os policiais não deram crédito ao relato da moradora, mesmo porque, depois da saída do tal homem misterioso, o acidente voltou a acontecer. Mais uma vez a população foi assaltada de pavor, agora não mais um barco pequeno fora vitimado, mas um de grande porte, e desta vez com um sobrevivente, que foi levado às pressas, entre a vida e a morte, para o hospital da cidade vizinha.
Num dos momentos de delírio, o homem, que veio a falecer três dias depois de dar entrada no hospital, dava gritos de terror: — Não deixem
que ele me pegue!
Esse fato chamou a atenção dos policiais. Mas eles não sabiam como isso poderia ajudá-los nas investigações.
Os moradores começaram a observar também o aparecimento de restos de corpos de animais de grande porte, como bois, cabritos e até os peixes passaram a desaparecer daquele rio.
Num domingo quando a população estava se divertindo à beira do Rio Belo, ouviu-se um grito desesperado. Era de um rapaz que estava sendo atacado por uma criatura gigante. Um peixe de aspecto aterrorizante partia para cima dos banhistas. O rapaz não conseguiu escapar com vida.
— Pelo menos agora, pensaram os policiais, sabemos com que estamos lidando.
Prepararam uma expedição para liquidar de vez com aquilo que estava deixando em pânico a então pacata cidade de Rio Belo. Foram usados barcos especiais, equipados com torpedos e até helicópteros para resgatar as possíveis vítimas do feroz peixe.
Quando avistaram o animal, não pouparam munição. O bicho ficou encurralado e não resistiu à operação, feita com sucesso.
Os policiais trouxeram, como troféu para a população, pedaços do monstro do Rio Belo. Essa recebeu os policiais como heróis, debaixo
de vivas e aplausos.
Passada a euforia, os policiais resolveram investigar o quarto em que se alojara o hóspede citado por D. Clotildes. Só encontraram restos de algumas fórmulas que, levadas a laboratório, foi constatado tratar-se de alguns ingredientes que acelerava o crescimento.
Na verdade o tal homem misterioso era um cientista inescrupuloso que, no afã de ganhar dinheiro com uma fórmula que descobrira, acabou criando o peixe-monstro.
Depois desses acontecimentos, finalmente a cidade voltou a apresentar aquele aspecto que tanto me encantou quando a visitei pela primeira vez.
* COSTA, Lairson. Contando Histórias. Belém: L & A Editora, 2006.
ILUSTRE HABITANTE*
Ela era uma típica cidadezinha do interior, com suas matas, árvores frutíferas e igarapés – cada um melhor do que o outro –; levávamos aproximadamente uma hora e meia para chegar até lá.
Uma parte dos melhores momentos de nossa infância foram passados ali. Costumávamos ir eu, meu primo Elson, e meu amigo Felipe, filho da proprietária da casa, dona Raimunda.
A casa era simples, como a maioria das casas do interior. O que nos motivava a ir até lá eram os terrenos com muitos cajueiros, biribazeiros, ingazeiras e outras frutíferas, além dos banhos nos igarapés. Também nos chamavam a atenção os habitantes da casa.
Dona Raimunda era sempre muito alegre e com uma característica particular: a voz. Falava alto, mas, sempre que Felipe lhe chamava atenção, mudava de tom rapidamente, falando tão baixo que se tornava incompreensível, só se ouvia uns chchchcchchchch, o que causava muitos risos, principalmente em mim e meu primo.
Seu Deucimar era o compadre inseparável de D. Raimunda e seu Afrozino, que participou como combatente na Segunda Guerra Mundial. Como dizia, seu Deucimar era tão abnegado aos compadres que, quando seu Afrozino morreu, não mediu esforços para ficar com a viúva, pois dizia: – Compadre Afrozino me fez jurar em seu leito de morte que não abandonaria a comadre Raimunda por nada nesse mundo.
Olinda era a filha mais nova de dona Raimunda. Na verdade de linda só tinha o nome. Era totalmente desprovida de beleza, chegando mesmo a ser sem graça nenhuma, mais parecia uma garça, tamanhas eram as canelas.
Porém o morador que mais chamava atenção não era humano. Seu aspecto inicialmente causava repulsa. Mas logo que o conheciam a má impressão desaparecia. Muitos vinham de outras paragens só para ver tão ilustre figura.
Era chamado carinhosamente de Bu. Ele se afeiçoou de tal maneira à família que passou a fazer parte dela. Sentia ciúmes quando um de nós tentávamos nos aproximar de dona Raimunda. Logo aparecia tentando, com suas bicadas, nos afastar dela.
De tanto irmos ali, também passamos a fazer parte do rol de amigos do Bu, de tal maneira que passou a nos ver como um dos da casa.
Um belo dia de sol, quando mais uma vez fomos visitar aquele lugar, ficamos assustados. De longe avistamos uma multidão em frente à casa de dona Raimunda. Era um alvoroço só. Gente entrando e saindo. Felipe correu para ver o que acontecera. Ficamos mais atrás, pois estávamos com algumas bagagens. Quando, de repente, ouvimos lá de dentro. - Ele morreu! Ele morreu! Aí corremos também para ver do que se tratava. Para nossa surpresa, o motivo de tanto alvoroço era Bu, que havia recebido um tiro de algum caçador perverso.
O lugarejo parou para acompanhar os funerais de um dos seus mais famosos habitantes. Houve até banda de música e discurso diante do caixão improvisado do morto. Foi uma choradeira só. No cemitério, Dona Raimunda desmaiou várias vezes, dizia não suportar a ausência do amigo. Nem quando seu Afrozino morreu a viúva chorou tanto. Seu Deucimar ficou até meio enciumado com tanta dedicação.
Depois da morte do Bu a casa de dona Raimunda não foi mais a mesma.
* Publicado no livro INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.
TAMANHA, A FADINHA TRAVESSA
Tamanta era um fadinha travessa. Sempre estava envolvida em peripécias e se deliciava em ver as outras crianças atrapalhadas com as suas armações.
Sua mãe, fada Carícia, estava sempre chamando-lhe a atenção dizendo-lhe que um dia suas estrepolias poderiam ir longe demais. Disse-lhe que deveria usar seus poderes não para o mal, e sim para o bem das pessoas.
Tamanta parecia não ligar para os conselhos da mãe. Todas as manhãs lá ia ela, toda faceira no seu vestidinho de rendas brincar com as outras crianças da aldeia.
Certa vez estavam brincando de esconde-esconde. Tamanta teve uma idéia: - Quando todos estiverem escondidos atrás das árvores, me transformo num animalzinho feroz e assusto a todos. Assim fez.
Transformou-se primeiro em urso e começou a urrar. A criançada, quando viu o animal, disparou cada uma para a sua casa.
Tamanta gostou tanto da brincadeira que resolveu repeti-la outras vezes.
Em uma dessa vezes, uma das crianças ficou tão apavorada que se embrenhou na floresta. Correu tanto que não conseguiu encontrar o lugar de volta.
Passaram-se as horas e começou, então, a anoitecer. Quando os pais do menino perceberam a falta dele, ficaram apavorados e correram às casas dos vizinhos perguntando por ele.
Em poucos minutos toda a aldeia sabia do desaparecimento de Julinho. Todos prontificaram-se a procurá-lo. Como não era noite de lua cheia, ficou difícil encontrá-lo. Somente ao amanhecer acharam Julinho, que ardia em febre por ter ficado tanto tempo exposto ao sereno.
Foi levado para o hospital em estado grave.
Tamanta só ficou sabendo do acontecido quando veio, no horário de sempre, brincar com as crianças.
Imediatamente foi visitar Julinho. Quando viu o estado em que se encontrava, arrependeu-se de sua travessura e usou sua varinha mágica para restabelecer o garoto, o que aconteceu prontamente.
Tamanta, a partir daquele dia, se tornou a mais comportada das fadinhas.
*Publicado no livro INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.
RENASCIMENTO*
Tamanta era um fadinha travessa. Sempre estava envolvida em peripécias e se deliciava em ver as outras crianças atrapalhadas com as suas armações.
Sua mãe, fada Carícia, estava sempre chamando-lhe a atenção dizendo-lhe que um dia suas estrepolias poderiam ir longe demais. Disse-lhe que deveria usar seus poderes não para o mal, e sim para o bem das pessoas.
Tamanta parecia não ligar para os conselhos da mãe. Todas as manhãs lá ia ela, toda faceira no seu vestidinho de rendas brincar com as outras crianças da aldeia.
Certa vez estavam brincando de esconde-esconde. Tamanta teve uma idéia: - Quando todos estiverem escondidos atrás das árvores, me transformo num animalzinho feroz e assusto a todos. Assim fez.
Transformou-se primeiro em urso e começou a urrar. A criançada, quando viu o animal, disparou cada uma para a sua casa.
Tamanta gostou tanto da brincadeira que resolveu repeti-la outras vezes.
Em uma dessa vezes, uma das crianças ficou tão apavorada que se embrenhou na floresta. Correu tanto que não conseguiu encontrar o lugar de volta.
Passaram-se as horas e começou, então, a anoitecer. Quando os pais do menino perceberam a falta dele, ficaram apavorados e correram às casas dos vizinhos perguntando por ele.
Em poucos minutos toda a aldeia sabia do desaparecimento de Julinho. Todos prontificaram-se a procurá-lo. Como não era noite de lua cheia, ficou difícil encontrá-lo. Somente ao amanhecer acharam Julinho, que ardia em febre por ter ficado tanto tempo exposto ao sereno.
Foi levado para o hospital em estado grave.
Tamanta só ficou sabendo do acontecido quando veio, no horário de sempre, brincar com as crianças.
Imediatamente foi visitar Julinho. Quando viu o estado em que se encontrava, arrependeu-se de sua travessura e usou sua varinha mágica para restabelecer o garoto, o que aconteceu prontamente.
Tamanta, a partir daquele dia, se tornou a mais comportada das fadinhas.
*COSTA, LAIRSON. INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.
O SONHO DE DIVA*
Aquele parque era o sonho de Diva. Só o conhecia por fotos e pela televisão.
– Um dia ainda vou visitar esse parque – pensava ela, esperançosa.
Morava numa cidadezinha do interior do Estado do Pará. Seus pais não tinham recursos. O dinheiro que ganhavam mal dava para o alimento diário.
Um dia acordou com uma idéia. – Vou escrever para o dono do parque contando da vontade que tenho de visitar ele. Confio que ele me ajudará.
Levantou-se, pegou caneta e papel e começou a escrever o que lhe vinha à cabeça.
“Prezado dono do parque Beto Carrero”
Meu nome é Diva da Silva e tenho dez ano. Sou uma garota fascinada pelo seu parque. Fico dias e dias sonhando em conhecer ele, mas meus pais não têm condições de me levar até aí...”
Pediu para seu pai arrumar uma bicicleta emprestada para levá-la até um posto dos correios, que ficava alguns quilômetros dali. Ali depositou sua carta e também a esperança.
Depois disso foi que não parou mesmo de pensar no tal parque. Todas as noites sonhava, até acordada, que o carteiro chegava a sua casa trazendo a tão esperada resposta do proprietário do parque.
Passaram-se dois, três, seis meses e nada de resposta. As pessoas que sabiam o que ela fizera começavam a dissuadi-la, dizendo que a tal carta talvez não tivesse chegado ao seu destino.
Diva, contudo, não desistia do sonho de ver aquele parque de perto.
Mais meses se passaram. Tudo levava a crer que as pessoas tinham razão: a carta não chegou ao destinatário.
Uma manhã de sábado, quando Diva relia o rascunho da carta que enviara, ouviu uma voz de alguém que dizia: carteiro, carteiro.
O coração de Diva disparou a mil por hora. Correu para a porta, onde sua mãe já estava recebendo um envelope com selo de Santa Catarina.
– É do parque filha! É do parque!
Abriram com rapidez o envelope. Na carta, o próprio Beto Carrero, proprietário do parque, dizia ter ficado sensibilizado com a história de Diva e mandava duas passagens de avião para que ela e sua mãe fossem conhecer o "Beto Carrero World".
A passagem estava marcada para uma semana depois. Diva não se continha de alegria e ansiedade.
Chegou o dia da viagem, Diva e sua mãe embarcam no avião no aeroporto de Val de Cães, em Belém, e poucas horas depois estavam em Florianópolis, de onde foram recebidas por uma comitiva e levadas ao parque.
Quando chegaram, Diva não sabia por que brinquedo começar, queria todos ao mesmo tempo. Mal podia se conter de tanta felicidade.
No dia seguinte, agradeceram a Beto Carrero a oportunidade e voltaram para sua cidadezinha, certas de que vale a pena lutar por um sonho.
*COSTA, LAIRSON. CONTANDO HISTÓRIAS, Belém: L & A Editora, 2005.
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